sábado, 27 de junho de 2009

CÂNTICO NEGRO - declamado por João Villaret

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros de que seria bom que eu os ouvisse .

Quando me dizem: "vem por aqui!"

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços e nunca vou por ali...


A minha glória é esta: Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre a minha mãe

Não, não vou por aí!

Só vou por onde me levam meus próprios passos...


Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos,

Arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós que me dareis impulsos, ferramentas, machados e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o longe e a miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tectos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou.

É uma onda que se levantou.

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

- Sei que não vou por aí!

José Régio

Que poema extraordinário..!!!! Não acham ?

Algumas notas biográficas

José Régio (1901 - 1969 )

José Régio nasceu em Vila do Conde, norte de Portugal .

José Régio é o seu pseudónimo. Na realidade chamava-se José Maria dos Reis Pereira.

Licenciou-se na Universidade de Coimbra em Filosofia Romântica (1925).

Como escritor dedicou-se ao romance, teatro, poesia e ensaio.

Nas suas obras está sempre patente as problemáticas do conflito entre Deus e o homem, o indivíduo e a sociedade, analisando criticamente as relações humanas e a solidão.

Assim, como podemos verificar no seu poema Cântico Negro, a auto-análise e a introspecção são constantes na sua obra.

A sua poesia, de grande tensão lírica e dramática, apresenta-se frequentemente como uma espécie de diálogo entre níveis diferentes da consciência . A mesma intensidade psicológica, aliada a um sentido de crítica social.

Isa Magalhães

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